
De natureza histórica incerta, o carnaval possui algumas
possíveis narrativas de seu início. Partindo da antiguidade grega,
estava vinculado a festas de agradecimento às divindades pela
fertilidade e produtividade agrícola. Em Roma, o carnaval durava 7 dias,
todas as atividades e negócios paravam, a moral era colocada em
suspensão e inclusive os escravos eram libertos para poderem se divertir
à vontade nas ruas e praças da cidade. Havia abundância de bebida,
comida e prazeres. A partir do séc. VI até o séc. XI, associado ao
calendário cristão, firmou-se como uma ideia de adeus à carne,
proveniente do latim carnis levale, ou ainda prazeres da carne, também
do latim carnis vales. Este tornou-se um período onde se dá liberdade
aos prazeres da carne, num tom de despedida, para dar início ao período
de abstinência e jejum – a quaresma, nome dado aos 40 dias que antecipam
a Semana Santa. De todo modo, o que valia era a ideia de alegria, de
prazer, de suspensão da patrulha moral, de festa popular, de ocupar as
ruas e de democracia do divertimento.
Em cada lugar do mundo a festa de carnaval foi tomando
cores, músicas, danças, formas e significados diferentes, adequando à
cultura local e ao jeito de ser de cada povo e nação. Não foi diferente
no Brasil. Sobre a disputa de quem tem a maior festa de carnaval do
mundo (Sapucaí, Rio de Janeiro – RJ), o maior bloco de carnaval do mundo
(Bloco Galo da Madrugada, Recife – PE), ou o maior carnaval de rua,
leia-se, gratuito, do mundo (São Salvador – BA), descobri esse ano que
Teresina não fica atrás dessa megalomania brasileira acerca do carnaval,
sendo, atualmente, a cidade que tem a maior festa de Corso do mundo.
Originado na Europa, em fins do séc. XIX, o Corso no
Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, segue o tradicional desfile
de carros alegóricos, com algumas peculiaridades. Sem a Batalha das
Flores, costume oficial do Corso de Nice, na França, na capital do
estado da Guanabara, famílias da elite local ou pessoas com poder
econômico tal que conseguiam alugar um carro de carroceria aberta
desfilavam nas praças públicas. Ser visto naquela posição conferia, ao
seleto grupo de pessoas que podiam desfilar de carro, ainda mais poder
social – status. No entanto, o tradicional corso foi sendo trocado pelos
“Bailes de Carnaval”, em locais fechados, visto que muitas famílias de
origem abastada não consideravam mais tão interessante continuar
desfilando no corso ao lado de caminhões alugados entupidos de pessoas
que também queriam o prazer de desfilar no carnaval.
Em Picos – PI, seguindo a tradição da capital Teresina, o
corso é o desfile de caminhões enfeitados, cheios de foliões alegres em
suas fantasias ou “camisas de bloco”, sendo avaliados em sua
criatividade e originalidade por um corpo de jurados. Uma pequena
Sapucaí aberta ao público, salvo as devidas proporções e diferenças. Na
Sapucaí, paga-se (e caro!) para estar na arquibancada. No maior carnaval
do mundo, as escolas de samba representam uma cultura local, hoje
extremamente mercantilizada, porém, é a cultura da favela que é a
estrela do carnaval, é dos barracões da periferia de onde saem os carros
alegóricos e as estrelas do desfile. É a cultura do povo local que é
usurpada e capitalizada para o lucro de grupos gerenciadores do carnaval
carioca. Pelas terras vermelhas de Picos, o carnaval ainda não se
tornou megalomaníaco, mas o capital deu um jeito de capitaneá-lo. A
arquibancada do corso picoense ainda é gratuita. E o povo tem o direito
garantido de ver desfilar, em caminhões alegóricos, a cultura
subjetivada da sua tradicional elite ao lado da mesma cultura
subjetivada do aglomerado de pessoas de classe média em seus caminhões
alugados. Por aqui, a elite picoense não é tão asséptica quanto a elite
carioca, conquanto haja o velho princípio da democratização do
divertimento a là democratização da divisão de Gonzagão: o “dois pra mim
e um pra tu” travestido do "eu desfilo e você me vê". Assim, o capital
usurpa a cultura local e oferece gratuitamente, para amplo consumo, a
cultura subjetivada e industrializada de outras localidades.
Libertar o escravo ou o que você escraviza dentro de você
no carnaval nunca foi tão fácil. Por isso a democratização do
divertimento sempre teve problemas de realmente acontecer. Em Veneza, a
elite saía de máscaras pelas ruas da cidade, junto ao povo (que sempre
ocupou o espaço da rua no carnaval), a fim de poder desfrutar livremente
da suspensão moral nesses dias de festa. Em Salvador, há 42 anos, o
primeiro bloco negro organizado de carnaval chegava no circuito
carnavalesco para desfilar na avenida oficial sem ser esperado, sem ser
convidado. Não esperaram ser anunciados, mas anunciaram-se cantando "Que
Bloco é esse? Eu quero saber / É o mundo negro que viemos mostrar pra
vc". Era o Ilê Aiyê demarcando espaço, requerendo seu direito de desfile
e de divertimento junto à maior festa popular do mundo.
Se por um lado, a elite sempre teve que enfrentar problemas
morais por não saber liberar sua moral escravizada por um punhado de
normas e condutas, os pobres e excluídos sempre tiveram que enfrentar
problemas de demarcação de espaço, de garantia de direitos, de
democratização, valorização e reconhecimento.
Um grupo de crianças e adolescentes negros e negras pobres
da cidade de Picos, tocadores de tambor, liderados por um idealista,
tenta se inscrever no corso, mas não conseguem. Por que? Porque não têm
carro, nem dinheiro para alugar um em que caibam todas as crianças e
seus tambores em cima dele. O líder do Grupo Percussão Origens, orienta
os percussionistas mirins a furar o desfile e sair no chão: ao invés de
rodas, pés negros; ao invés de motor ao diesel, biomecânica movida à
glicose transformada em energia, aliado à adrenalina e muita serotonina;
ao invés de som automotivo de alta potência, caixas e módulos, som
acústico de caixas, tambores, surdos e bumbos, produzidos pelos meninos e
meninas enquanto desfilam. Verdadeiros penetras da festa oficial,
passam em frente ao palco onde estão os jurados e não são anunciados,
não são citados, não são reconhecidos.
Todo penetra que ocupa uma festa, o faz resistindo a forças
instituídas e oficiais, assim, o Percussão Origens também tem essa
marca da resistência, e há que continuar a reivindicar seu espaço no
desfile do circuito oficial, nem que seja burlando os poderes
instituídos, nem que seja com o ronco de seus tambores ao invés de
motores. Sobre a festa de Carnaval, tão popular na França, Foucault
disse que “a festa é no fundo, a maravilhosa liberdade de estar louco e
de achar no coração dessa cegueira a iluminação de todo um mundo que
está em festa”. Que o resistir seja então a força maravilhosa que nos
faz estar em festa e que faz o outro, qualquer outro e todos os outros
que desejam essa cegueira, estar em festa também. Espero que o carnaval
de Picos entenda que essa festa popular está para além do que é oficial,
mas especialmente do que é oficioso. Porque pra mim, foi quando o
Origens passou, que meu coração viu que chegou o carnaval.